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segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

O PARTO (EM VERSOS)

Pra se fazer um poema
É preciso de uma amada
Bem mais que de um tema
E é claro, uma boa madrugada.

Papel e caneta são detalhes
Já que o poema é loucura
É simplesmente o remédio, a cura
De todos os males.

Mas quem escreve um poema
Não se salva, se envenena
Com seus velhos sonhos.

E há quem enxergue deus solidário
Nos olhos do poeta solitário
Mas seu coração é um cárcere de demônios.

domingo, 30 de janeiro de 2011

De Fé

Sempre que eu preciso
Me desconectar
Todos os caminhos
Levam ao mesmo lugar
É meu esconderijo
O meu altar
Quando todo mundo
Quer me crucificar...

Eu só quero estar
Com você!
Ficar com você!...

Quando o tempo fecha
E o céu quer desabar
Perto do limite
Difícil de agüentar
Eu volto prá casa
E te peço prá ficar...
Em silêncio
Só ficar...

Eu tenho muitos amigos
Tenho discos e livros
Mas quando eu mais preciso
Eu só tenho você...

Tenho sorte e juízo
Cartão de crédito
E um imenso disco rígido
Mas quando eu mais preciso
Eu só tenho você
Quando eu mais preciso
Eu só tenho você...

Tenho a consciência em paz
(Só tenho você)
Tenho mais do que eu preciso
(Só tenho você)
Mas, se eu preciso de paz
Eu só tenho você
Tenho muito mais dúvidas
Do que certezas
Hoje, com certeza
Eu só tenho você...

Eu tenho medo de cobras
Já tive medo do escuro
Tenho medo de te perder...

Uma Delicada Forma de Calor

Eu me lembro
de você ter falado
Alguma coisa sobre mim
E logo hoje, tudo isso vem à tona
E me parece cair como uma luva
Agora, num dia em que eu choro
Eu tô chovendo muito mais do que lá fora
Lá fora é só água caindo
Enquanto aqui dentro, cai a chuva

E quanto ao que você me disse
Eu me lembro sorrindo
Vendo você tão séria
Tentar me enquadrar, se sou isso
Ou se sou aquilo
E acabar indignada, me achando totalmente impossível
E talvez seja apenas isso:
Chovendo por dentro
Impossível por fora

Eu me lembro de você descontrolada
Tentando se explicar
Como é que a gente pode ser tanta coisa indefinível
Tanta coisa diferente
Sem saber que a beleza de tudo
É a certeza de nada
E que o talvez torne a vida um pouco mais atraente


E talvez, a chuva, o cinza,
O medo, a vida, sejam como eu
Ou talvez , porque você esteja de repente,
Assistindo muita televisão

E como um deus que não se vence nunca
O seu olhar não consegue perceber
Como uma chuva, uma tristeza, podem ser uma beleza
E o frio, uma delicada forma
De calor

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Oscar Wilde

"A cada bela impressão que causamos, conquistamos um inimigo. 
Para ser popular é indispensável ser medíocre."

Papel 26/01/11



O papel espera pacientemente
Que a próxima palavra seja impressa
Que a próxima pagina seja escrita
Preenchida pelo poeta
Que procura uma dor pungente
Para que possa sangrar em versos
Confortando toda a gente
Dilacerando a própria ferida.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Antônio Abujamra

Poema de Fernando Pessoa, fragmento da obra "O guardador de rebanhos".  

Minhas correntezas 24/10/08

                Era chegada a hora, tomei coragem, tomei fôlego e então mergulhei em mim!
               
No principio era tranqüilo, como uma piscina, era raso e seguro, mas então vieram às primeiras marolas, e eu já não era uma piscina, era um rio que brota do fundo da terra silencioso, frágil, mas que logo ganha força, já não podia ser domado, já não podia ser contido, só posso agora seguir minha correnteza.
Mas de repente me vi afogar, já não era mais rio, era agora mar, sem fim, sem proporções, tudo que eu era, era profundidade, obscuridade. Eu era maior que mim mesmo.

Oh, minha amada aprenda com os pescadores, que são felizes navegando sobre a aparente mansidão do mar, pois do mar eles só conhecem a superfície e sabem dentro de si que existem profundidades que nunca devem ser alcançadas.
Aprenda isso doce amada, aprenda com a humildade dos pescadores, pois as minhas profundidades são muito mais obscuras e perigosas do que as do mar. Pois em meu peito pulsa, vivi, o pior dos demônios... o coração de um poeta.                         

Os pássaros 05/05/2010

Se o meu amor fosse um pássaro
Não teria o canto belo dos rouxinóis
Nem o vôo poético das gaivotas
Nem a vigilância noturna das corujas.

Se meu amor fosse um pássaro
Não teria a avidez das águias
Nem a delicadeza dos beija flores
Nem a simbologia dos pombos.

Se meu amor fosse um pássaro
Não teria a elegância dos pavões
Nem a superioridade dos cisnes
Nem tão pouco a presunção dos flamingos.

Mas se meu amor fosse um pássaro
Também não teria a tristeza negra dos corvos
Nem tão pouco a graça patética dos pingüins
Muito menos a servidão estúpida das galinhas.

O amor que tenho
É mudo... 
É simples...
É cotidiano...
É normal...
Por isso se meu amor fosse um pássaro
Seria o pássaro mais simples de todos
Seria apenas um pardal.

Excesso exceto

O que se abre aberto
Se aproxima perto
Pra esvaziar o já deserto

Desorienta o incerto
Ruma sem trajeto
Nunca existiu mas eu deleto

Querer sem objeto
Voz sem alfabeto
Enchendo um corpo já repleto

O excesso, o exceto
O etcétera e todo resto
Do chão ao céu, da boca ao reto

Eu só eu
No meu vazio
Se não morreu
Nem existiu

Só eu só
No meu pavio
Futuro pó
Que me pariu

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Mário Quintana

            "Sonhar é acordar-se para dentro".

Teresinha

O primeiro me chegou
Com quem vem do florista
Trouce um bicho de pelúcia
E um broche de ametista
Me contou suas viagens
E as vantagens que ele tinha
Me mostrou o seu relógio
Me chamava de rainha.
Me encontrou tão desarmada
Que tocou meu coração
Mas não me negava nada
E assustada eu disse: não.

O segundo me chegou
Como quem chega do bar
Trouxe um litro de água ardente
Tão amarga de tragar
Indagou o meu passado
E cheirou minha comida
Vasculhou minha gaveta
Me chamava de perdida.
Me encontrou tão desarmada
Que arranhou meu coração
Mas não me entregava nada
E assustada eu disse: não.

O terceiro me chegou
Como quem chega do nada
Ele não me trouxe nada
Também nada perguntou
Mal sei como ele se chama
Mas entendo o que ele quer
Se deitou na minha cama
E me chama de mulher.
Foi chegando sorrateiro
E antes que eu dissesse: não
Se instalou feito um posseiro
Dentro do meu coração.       

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Ela e a metafísica 20/04/09

Não vou dizer que em dias cinzas como hoje me lembro de você
Está comparação pode até ser poética, mas não é verdadeira.
Em dias assim cinzas como este, lembro de mim mesmo, da minha tristeza crônica
de poeta, da minha solidão gigantesca e necessária que me faz amar de mais.
De você eu lembro nos dias mais ensolarados e quentes, pois estes dias são iguais a você luminosa e radiante.
Não gosto de lembrar de você assim como hoje, desta forma sem esperança.
Prefiro acreditar que existem coisas que passam, e existem coisas que sempre são, como se Heráclito e Parmênides estivessem certos ao mesmo tempo. E você é a prova de coisas que sempre são, pois você existia em mim como sonho, depois te encontrei como vida, e hoje és a minha melhor lembrança.
És uma musica distante que me acalma quando tudo está perdido.
Pois para além das limitações de tempo e espaço, existe algo de mágico em nós, algo de abstrato, que não conhece distancia, e nem conhece tempo, algo que sempre é, algo imóvel, como diria Zenão. Algo que não envelhece, como sonhos, idéias e sentimentos.

minha casa








é mais fácil cultuar os mortos que os vivos 
mais fácil viver de sombras que de sóis
é mais fácil mimeografar o passado
que imprimir o futuro
não quero ser triste
como o poeta que envelhece 
lendo maiakóvski na loja de conveniência
não quero ser alegre
como o cão que sai a passear com o seu dono alegre 
sob o sol de domingo
nem quero ser estanque
como quem constrói estradas e não anda
quero no escurocomo um cego tatear estrelas distraídas


amoras silvestres no passeio público
amores secretos debaixo dos guarda-chuvas
tempestades que não param
pára-raios quem não tem? 
mesmo que não venha o trem não posso parar

veja o mundo passar como passa
uma escola de samba que atravessa
pergunto onde estão teus tamborins
pergunto onde estão teus tamborins
sentado na porta de minha casa
a mesma e única casa
a casa onde eu sempre morei

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Fragmento retirado de “O guardador de rebanhos”



Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.

O gosto da escuridão 19/05/09

Gosto do entardecer
Gosto de sentir
O escuro me envolver
De ver o dia se apagar
Como meu sonho,
De ver o sol morrer
Como a minha esperança.

E chego até pensar
Que o que apaga o sol
É o sal
Das minhas lagrimas.
Sonhar sempre foi
O meu maior defeito
Mas isso é o que também
Trago de mais doce
Sob meu peito.
Um sonho que morre
Ao entardecer
Como o dia,
Mas tem nada não
Logo vem a escuridão
Para revelar
Demônios e poesias.

Gosto do entardecer
Gosto de ver
A luz morrer
E a sombra
Reinar soberana.

Gosto de sentir
A escuridão chegar
E abrigar
Tudo que a luz
Renegou
Os vícios, os crimes,
Os desvalidos
Os poetas malditos
E as lagrimas de amor.

Trecho retirado de “O retrato de Dorian Gray”

O mais ousado de todos nós teme-se a si mesmo. O
selvagem mutilado que nós somos sobrevive tragicamente na auto-rejeição que
frustra as nossas vidas. Somos punidos pelas nossas rejeições. Todo o
impulso que esforçadamente asfixiamos fica a fermentar no nosso espírito, e
envenena-nos. O corpo peca uma vez, e mais não precisa, pois a acção é um
processo de purificação. E nada fica, a não ser a lembrança de um prazer, ou
o luxo de um pesar. Ceder a uma tentação é a única maneira de nos
libertarmos dela. Se lhe resistimos, a alma enlanguesce, adoece com as
saudades de tudo o que a si mesma proíbe, e de desejo por tudo o que as suas
leis monstruosas converteram em monstruosidade e ilegalidade. Diz-se que as
grandes realizações deste mundo ocorrem no cérebro. É também no cérebro, e
só aí, que ocorrem os grandes erros do mundo.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Poema cafona 17/12/2010

O teu sorriso
Me lembra que a vida
Ainda faz sentido.
O teu silêncio
Me lembra que a morte
Também faz.

O teu olhar na fotografia
Me lembra todas as coisas
Que nunca serão minhas.

Te ver viver de longe
Me dá uma sensação estranha
De felicidade e tristeza.

Então desejo o amor concreto
Do batom em teus lábios
Das lagrimas em teus olhos.
Te ver sorrir de longe
Me causa a mesma dor
Que te ver chorando
Em meus braços.

Perdoa meu egoísmo
De poeta ordinário
De amor de faz de conta.
É que em toda essa distância
Meu coração busca algo real
Ainda que seja uma dor,
Uma lagrima, um adeus.

Pobre coração
Que nesse peito ainda bate
Sufocado pela abstração
Das palavras, dos sonhos,
E da saudade.

Os ombros suportam o mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossege
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

A arte poética 24/08/09

Meu copo estar seco
Meu leito vazio
Meus olhos estão úmidos
E mais parecem rios.

Meu corpo estar seco
Meu peito vazio
Minha boca estar molhada
Preparada pra te engolir.

Meu cigarro estar aceso
Posto sobre a mesa.
Meus dias estão desertos
E ainda espero que minha vida aconteça
Como se eu fosse um feto.

Mas não me leve a serio
Não é um fato certo
As coisas ditas pelos poetas,
Nem na terra, nem no céu, em nem uma parte
Mentiras não são sinceras
Só porque são ditas em versos
Elas ainda são mentiras
Só que elevadas à condição de arte.    

O poeta, o filósofo e o nada 08/04/2010

Os poetas dizem
Que não se deve fazer nada sem paixão
Os filósofos dizem
Que não se deve fazer nada por paixão
E eu que sou poeta e filósofo
Acabei por não fazer nada
E vivi uma vida poética, teórica e inútil.

Os poetas dizem
Que só quem ama conhece a verdade das coisas
Os filósofos dizem
Que o amor faz os homens ver as coisas como elas não são
E eu que sou meio poeta e meio filósofo
Acabei amando pela metade
E quem ama pela metade
Sofre completamente.

E entre as frases ardentes e ardis dos poetas
E as verdades frias e completamente desnecessárias dos filósofos
Eu fico com que na vida há de mais inteligente
Que é o silêncio proeminente dos mortos.

CONSOLO NA PRAIA

Vamos, não chores...
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.
Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o 'humour'?
A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.

Ternura

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção
Nos teus ouvidos.
Das horas que passei a sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça única dos teus passos eternamente fugindo.
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o desespero das lagrimas
Nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma.
O grande afeto que te deixo
É um sossego, uma unção, transbordamento de caricias
E só te peço que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as minhas mãos quentes na noite
Encontrem sem fatalidade o teu olhar iluminado de auroras.          

Trecho retirado do livro “Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres” de Clarisse Lispector.

E agora chegara o momento de decidir se continuaria ou não vendo Ulisses. Em
súbita revolta ela não quis aprender o que ele pacientemente parecia querer ensinar e ela
mesma aprender — revoltava-se sobretudo porque aquela não era para ela época de
"meditação" que de súbito parecia ridícula: estava vibrando em puro desejo como lhe
acontecia antes e depois da menstruação. Mas era como se ele quisesse que ela
aprendesse a andar com as próprias pernas e só então, preparada para a liberdade por
Ulisses, ela fosse dele — o que é que ele queria dela, além de tranqüilamente desejá-la?
No começo Lóri enganara-se e pensara que Ulisses queria lhe transmitir algumas coisas
das aulas de filosofia mas ele disse: "não é de filosofia que você está precisando, se fosse
seria fácil: você assistiria às minhas aulas como ouvinte e eu conversaria com você em
outros termos", pois que agora o terremoto serviria à sua histeria e agora que estava
libertada podia até adiar para o futuro a decisão de não ver Ulisses: só que hoje queria
vê-lo e, apesar de não tolerar o mudo desejo dele, sabia que na verdade era ela quem o
provocava para tentar quebrar a paciência com que ele esperava; com a mesada que o
pai mandava comprava vestidos caros sempre justos, era só isso que sabia fazer para
atraí-lo e estava na hora de se vestir: olhou-se ao espelho e só era bonita pelo fato de ser
uma mulher: seu corpo era fino e forte, um dos motivos imaginários que fazia com que
Ulisses a quisesse; escolheu um vestido de fazenda pesada, apesar do calor, quase sem
modelo, o modelo seria o seu próprio corpo mas enfeitar-se era um ritual que a tornava
grave: a fazenda já não era um mero tecido, transformava-se em matéria de coisa e era
esse estofo que com o seu corpo ela dava corpo — como podia um simples pano ganhar
tanto movimento? seus cabelos de manhã lavados e secos ao sol do pequeno terraço
estavam da seda castanha mais antiga — bonita? não, mulher: Lóri então pintou
cuidadosamente os lábios e os olhos, o que ela fazia, segundo uma colega, muito mal
feito, passou perfume na testa e no nascimento dos seios — a terra era perfumada com
cheiro de mil folhas e flores esmagadas: Lóri se perfumava e essa era uma das suas
imitações do mundo, ela que tanto procurava aprender a vida — com o perfume, de algum
modo intensificava o que quer que ela era e por isso não podia usar perfumes que a
contradiziam: perfumar-se era de uma sabedoria instintiva, vinda de milênios de mulheres
aparentemente passivas aprendendo, e, como toda arte, exigia que ela tivesse um
mínimo de conhecimento de si própria: usava um perfume levemente sufocante, gostoso
como húmus, como se a cabeça deitada, esmagasse húmus, cujo nome não dizia a
nenhuma de suas colegas-professoras: porque ele era seu, era ela, já que para Lóri
perfumar-se era um ato secreto e quase religioso — usaria brincos? hesitou, pois queria
orelhas apenas delicadas e simples, alguma coisa modestamente nua, hesitou mais:
riqueza ainda maior seria a de esconder com os cabelos as orelhas de corça e torná-las
secretas, mas não resistiu: descobriu-as, esticando os cabelos para trás das orelhas
incongruentes e pálidas: rainha egípcia? não, toda ornada como as mulheres bíblicas, e
havia também algo em seus olhos pintados que dizia com melancolia: decifra-me, meu
amor, ou serei obrigada a devorar, e agora pronta, vestida, o mais bonita quanto poderia
chegar a sê-lo, vinha novamente a dúvida de ir ou não ao encontro com Ulisses — pronta,
de braços pendentes, pensativa, iria ou não ao encontro? com Ulisses ela se comportava
como uma virgem que não era mais, embora tivesse certeza de que também isso ele
adivinhava, aquele sábio estranho que no entanto não parecia adivinhar que ela queria
amor.